Abraçar uma carreira
artística é desprezar qualquer outra coisa.
É ser fiel, eternamente fiel à gloriosa atividade de
transmitir ao povo a arte pela arte. O
artista autêntico vive do presente, esquece que existe o futuro e não se
prepara para enfrentá-lo. Muitos deles
sofrem profunda depressão quando
as luzes da fama se apagam. Uns porque ficaram pobres, outros porque
deixaram de ouvir o aplauso tão gratificante e que representava o alimento da
própria alma.
Essa reflexão é para afirmar que conheci
muitos artistas que achavam que jamais seriam esquecidos pelo publico ou que o
tempo jamais os haveria de levar à solidão e ao abandono. A fama seria
eterna. Um exemplo disso tem um nome:
Roberto Bozan. Para quem não o conheceu traço
um perfil da pessoa. Era um cantor popular, de origem humilde, que interpretava bolerões que algumas pessoas conhecem hoje como bregas. A chamada musica de ”roedeira”, que tocava
muito nas radiolas de ficha que existiam
em profusão nos bares e gafieiras da cidade. Bozan era famoso, tão
famoso que chegou a gravar muitos discos de vinil na gravadora Mocambo,
a única do gênero do Nordeste, que prestigiava os artistas da terra produzindo
e distribuindo discos para toda a
região. Bozan era um dos artistas que mais vendiam no mercado fonográfico. Suas musicas
eram divulgadas intensamente pelas Emissoras de Rádio. Os grandes artistas que faziam sucesso no
disco também cantavam nos programas do Rádio Jornal e da Rádio Clube, as únicas
Emissoras com auditório na época.
Roberto Bozan era ídolo do programa
“Varietê”, comandado por Jader de
Oliveira, aos domingos, à noite. Cantava
ao vivo, acompanhado de um conjunto musical da própria emissora. Práticamente era sua única obrigação semanal. Nem
precisava ensaiar porque os músicos do conjunto sabiam de cor e salteado o que
ele cantava e a tonalidade das musicas.
Botava uma béca bacana e lá estava Bozan recebendo os calorosos
aplausos das 500 pessoas que lotavam o auditório no quarto andar do prédio do
Radio Jornal, na Rua Marquês do Recife.
Apesar de trabalhar tão pouco – uma vezinha por semana -
Bozan era contratado da Emissora. Carteira assinada para ser exclusivo e
não se apresentar na estação concorrente.
De tanto se sentir artista consagrado, admirado pelo povo,
Bozan não se desgrudava da fama.
Estava sempre
bem vestido e quase toda tarde se postava na portaria do Radio Jornal, com pose de galã, para receber os cumprimentos de quem passava
pela frente. E muita gente o assediava
pedindo um autógrafo ou simplesmente reconhecendo a sua figura de cantor famoso.
Foi quando surgiu a Televisão. A grande maioria dos artistas do Rádio passaram de malas e bagagens para o novo e
revolucionário veiculo de comunicação. Menos
Bozan, que era um artista tido como popularesco para o novo veiculo que chegava
com muito luxo e sofisticação. Cantar na
Televisão, nos programas comandados por
Fernando Castelão (“Você faz o show”) e Luiz Geraldo (“Noite de
Black-tie”) só os cantores admirados
pela elite ou aqueles que cantavam musicas do mais alto nível. Tinha outra
coisa ainda: a figura de Bozan, um morenão meio desengonçado, não tinha
aquela imagem de galã para
enfrentar uma câmera.
Resultado: a programação das Emissoras de Rádio foram se
modificando, os programas de auditório foram se extinguindo e Roberto Bozan terminou sendo
demitido.
Eu era produtor do Rádio Jornal. A sala da produção ficava
no quinto andar do prédio da
extinta sede da Empresa Jornal do
Commercio, na Rua Marques do Recife esquina com a Rua do Imperador. Uma
tarde,
Roberto Bozan surgiu na minha frente me oferecendo um pacote:
- “Compra prá me ajudar. É um
quilo de fígado de boi do açougue do meu irmão.”
O produto estava envolvido
numa folha de papel de jornal, todo ensangüentado. Olhei
prá ele e indaguei:
- “Bozan, por que antes de você chegar nessa
situação que está hoje, você não procurou
ocupar o tempo vago de que dispunha com outra atividade ?” - Bozan olhou bem prá mim e foi sincero:
- “Miguel, tudo o que eu
sabia fazer era cantar e jamais imaginei que deixaria de ser artista. Agora,
preciso sobreviver...” – a voz embargou, eu paguei o preço do quilo de fígado de boi e
ele foi embora.
Nunca mais ouvi falar em
Roberto Bozan e ele nunca mais me procurou. Triste sina do artista que jamais pensou que
deixaria de ser um dia ídolo do povo.
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